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Além de belas palavras: Necessitamos de ações concretas para celebrar o mês dos Povos Indígenas no Brasil

Por Edson Krenak (Krenak, CS Staff)

Este mês foi marcante para os povos Indígenas do país, especialmente para o povo Krenak, pois tivemos um reconhecimento significativo na literatura quanto a um reconhecimento formal há muito esperado pelos crimes do Estado Brasileiro. Recebemos um pedido de desculpas formal pelos abusos de direitos humanos sofridos durante a era da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Poucos dias após esse reconhecimento, um de nossos líderes mais estimados, o escritor e ambientalista Ailton Krenak, com quem tenho o privilégio de trabalhar muitas vezes, foi empossado na prestigiosa Academia Brasileira de Letras. Esta instituição é celebrada por seu círculo intelectual exclusivo, composto por algumas das principais figuras literárias da nação. Mas agora também é um espaço indigena.

Durante a cerimônia para a cadeira imortal, Ailton Krenak disse: "Estou aqui não para engrandecer a língua portuguesa, mas para trazer mais línguas, pois não somos um, mas 305 povos indígenas neste país." "Meus parentes vieram de diferentes partes do Brasil para estar aqui. Não posso mencionar cada etnia aqui, são muitas," disse Krenak em seu discurso. "Eu estou aqui. Sou Guarani, sou Kayapó, sou Xavante, sou todos eles..." Foi um evento bonito, de pompa, simbólico!"

Em outro evento cerimonioso, em uma das casas da Justiça do país com um palco adornado com bandeiras dos estados brasileiros e uma sala repleta de pessoas indígenas, juristas se posicionaram diante da líder indígena Djanira Krenak e outros e disseram: "Em nome do Estado brasileiro, quero pedir perdão por todo o sofrimento que seu povo passou." A jurista é a presidente da comissão de anistia vinculada ao ministério dos direitos humanos, responsável por investigar os crimes da ditadura e falou emocionada as contundentes palavras.

Essas ofensas envolveram deslocar os Krenak de seu território no sudeste de Minas Gerais para construir o que foi chamado de local de reformatório, e muitas outras formas de perseguição violenta que espalhou nosso povo e trouxe tanta dor. Neste local, os povos indígenas foram submetidos a tortura, abuso físico e foram proibidos de falar suas línguas nativas. Além disso, os militares estabeleceram uma guarda rural composta por indígenas, que foram instruídos em técnicas de tortura. A comissão também emitiu um pedido de desculpas ao povo indígena Guarani Kaiowá, que foi expulso de suas terras no estado do Mato Grosso do Sul para dar lugar a empreendimentos agrícolas operados por brasileiros não indígenas.

Atualmente, nossas necessidades vão além do simples reconhecimento e pedidos de desculpas. Nossas comunidades continuam enfrentando problemas graves, incluindo falta de segurança, acesso inadequado à água e nutrição precária. Muitos de nossos parentes ainda estão presos no processo prolongado de demarcação de terras. Este período de espera é cheio de desafios, pois suportamos violência, pobreza e invisibilidade social.

Linguagem florida e promessas vazias são tão efêmeras quanto palha ao vento. O que precisamos urgentemente são ações concretas e a plena aplicação de nossos direitos, conforme estabelecido não só na Constituição Brasileira de 1988, mas também em mecanismos internacionais. É hora de medidas concretas que verdadeiramente honrem e cumpram os direitos dos povos indígenas.

Para comemorar o Mês dos Povos Indígenas no Brasil, lançamos dois artigos significativos. O primeiro é uma carta à sociedade brasileira discutindo o 60º aniversário do regime militar do Brasil, na qual afirmamos que meros pedidos de desculpas são insuficientes, e que as políticas públicas devem priorizar os Povos Indígenas. O segundo artigo é uma entrevista com um educadora indígena que luta ativamente pelos territórios sagrados de terra e conhecimento na única aldeia indígena do Rio de Janeiro, a Aldeia Maracanã. Esta comunidade está engajada em uma luta persistente pelo reconhecimento oficial como território indígena, juntamente com a proteção.

 

Carta à Sociedade Brasileira: Não se Esqueça dos Povos Indígenas de 1964-1985

No 60º aniversário do golpe apoiado pelos EUA, os Povos Indígenas instam a Sociedade Brasileira a não esquecer e fazer justiça


1978 Periódico Palavra do Indio. Fonte Doc Virtual

Este ano 2024 completa sessenta anos do início da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Os detalhes e a quantidade de informação com que os livros de história escolares ou não narram esse período é indiscutível, mas não podemos ignorar que muitos brasileiros ainda guardam memórias vivas desse tempo de autoritarismo militar governamental. Entre eles, estamos nós os povos indígenas. Nesta carta quero lhe pedir duas coisas, mas antes deixa-me falar de algo. Apesar da ditadura ter sido um período antidemocrático e violento,me intriga que há uma parcela da população que, motivada pelos recentes acontecimentos políticos, parece ansiar pelo retorno do regime militar. Contudo, desejo que desviemos nossa atenção para um aspecto desse tempo que frequentemente passa despercebido: a experiência dos povos indígenas. Nesta carta, cuja leitura espero que seja cuidadosa e reflexiva, não me proponho a um relatório detalhado, ou uma lição de história, não; mas a enfatizar alguns acontecimentos marcantes e apresentar um pedido conciso.

Apesar da ditadura ter sido um período antidemocrático e violento,me intriga que há uma parcela da população que, motivada pelos recentes acontecimentos políticos, parece ansiar pelo retorno do regime militar. Contudo, desejo que desviemos nossa atenção para um aspecto desse tempo que frequentemente passa despercebido: a experiência dos povos indígenas. Nesta carta, cuja leitura espero que seja cuidadosa e reflexiva, não me proponho a um relatório detalhado, ou uma lição de história, não; mas a enfatizar alguns acontecimentos marcantes e apresentar um pedido conciso.

Desde a chegada dos portugueses às terras que hoje chamamos de Brasil, os povos indígenas têm sido subjugados a um ciclo incessante de violência, desapropriação de terras e direitos, genocídio e destruição cultural. O Estado brasileiro, moldado pelos legados coloniais, continuou a perpetrar esses crimes e atrocidades contra os primeiros habitantes e protetores de nossas florestas, rios e biodiversidade que adornam nossa nação.

A relação dos povos indígenas com o Estado e, por extensão, com a sociedade brasileira, está impregnada de traumas. O Estado não só mantém a violência, mas também falha em proteger essas comunidades, sendo frequentemente o autor de violações. Estes traumas, embora esporadicamente reconhecidos na consciência nacional, ainda causam sofrimento aos povos indígenas.

A ditadura militar, agora aos sessenta anos de seu início, trouxe um nível de violência e indiferença sem precedentes para nossos parentes indígenas. O que é alarmante é o excesso de conhecimento sobre a ditadura - abundância de livros, artigos e coberturas jornalísticas, especialmente nos últimos anos, sob a administração de Jair Bolsonaro, a história voltou a ser um assunto corriqueiro. No entanto, a questão indígena volta a ser invisibilizada e silenciada, mesmo diante das mesmas violações de direitos.

A história dos Pataxó na Bahia se repete em um ciclo trágico, como uma tragédia grega, na qual o Estado e as comunidades vulneráveis são protagonistas (Entendemos a dor de Antigona!). Essa amnésia nacional, essa recusa coletiva em confrontar e relembrar a violência sofrida pelos povos indígenas, é uma falha grave. O documento de 1984 detalha a cronologia da violência estatal a que esses povos foram submetidos - e, surpreendentemente, ainda enfrentam - em uma realidade que parece ecoar o refrão de um filme: "morrer, cair e repetir". A falta de ação para impedir a recorrência desses terríveis eventos revela muito sobre o caráter e os sonhos do país que vocês pretendem construir.

A história do meu povo foi profundamente afetada pelo infame Reformatório Krenak, uma prisão destinada a indígenas. Era o destino daqueles que, corajosamente resistindo, recusavam-se a ceder às exigências de uma sociedade marcada pela violência e pela injustiça. Eles eram ali confinados e abandonados, enfrentando condições de brutalidade que ultrapassavam as já severas adversidades impostas pelas prisões sob regimes ditatoriais do mundo. Muitos foram forçados a fugir, a se ocultar e a se proteger, muitas vezes à custa de sua própria identidade cultural. Este é um triste paralelo que se estende a outros povos indígenas através das Américas, do Canadá ao Uruguai. A América Latina, manchada por sangue e tirania dos governos ditatoriais dos anos 60, 70 e 80, ainda sofre uma herança de sofrimento, uma ferida aberta que ainda carece de cura.

Prezados contemporâneos brasileiros, pior que minimizar ou banalizar essa memória, é esquecer e ignorar esses traumas dos povos indígenas. Refiro-me aqui ao que foi esquecido e ao que muitos ignoram. Durante a ditadura militar, a situação dos povos indígenas foi notoriamente relatada – tanto nos principais jornais do país quanto no cenário internacional –, descrevendo cenas de violência, fome, doenças, negligência e inúmeras mortes. A Comissão Nacional da Verdade e outros pesquisadores estudaram o impacto dessa época em dez dos mais de 300 grupos indígenas brasileiros, constatando mais de 8.350 mortes violentas.

Com a promulgação do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em dezembro de 1968, as descobertas que emergiram do Relatório Figueiredo (documento produzido pela própria Ditadura) foram suprimidas do discurso público, e a justiça abandonada. Muitos daqueles afastados reassumiram seus cargos na Funai. Nenhuma prisão foi realizada. Fazendeiros que ocuparam as terras dos Pataxós, por exemplo, continuam a cometer violências e assassinatos enquanto aumentam suas posses.

 

Imagem do Boletim Juridico - Ano I N. 1 Junho de 1983 - Departamento Jurídico da Comissao Pro Indio de São Paulo

Os crimes elencados no Relatorio eram vastos e graves: assassinatos, prostituição forçada, tortura, trabalho escravo, desvios de recursos indígenas, entre outros. É chocante considerar que a origem das fortunas de muitas famílias proeminentes possa estar atrelada a tais atrocidades. Vejam a história das famílias mais ricas do Nordeste, do Centro-oeste, da Bahia… você vai constatar o que estou dizendo.

A violência foi tão extensa que a documentação oficial do Estado não permite aferir com precisão os danos financeiros infligidos aos indígenas, a fim de pleitear uma compensação justa. Documentos oficiais foram adulterados, processos de prestação de contas fraudados e provas destruídas. Contudo, nós não esquecemos.

Os Cinta-larga, ao lado de outros grupos do centro-oeste do Brasil, sofreram ataques brutais: bombardeios aéreos, envenenamentos, execuções a tiros e cortes de facão. Estes atos genocidas estão documentados no Massacre do Paralelo 11 em Mato Grosso, ocorrido em 1963, como ficou conhecido.

Quantos líderes indígenas, pajés e defensores dos povos originários perderam suas vidas na luta por justiça? A história registra alguns nomes - Encorajo-os a buscar e honrar a memória desses indivíduos! No entanto, encontrar essa informação pode ser um desafio, uma vez que as ruas e praças em que vocês caminham frequentemente homenageiam coronéis, generais e figuras coloniais, em vez de reconhecer as vítimas. Que possamos avançar em direção a uma sociedade que valorize e celebre a verdadeira herança e os heróis que lutaram pela preservação da dignidade e dos direitos humanos, da vida do planeta e da mãe Terra!

Indígena em pau-de-arara é exposto a autoridades em Belo Horizonte — Foto: Jesco von Puttkamer/Reprodução Globos news

Neste 60º aniversário do golpe apoiado pelos EUA, os Povos Indígenas exortam vocês (e os Estados Unidos!) a divulgarem documentos confidenciais, para fazer justiça! Como Kornbluh declarou ao Responsible Statecraft:“O grau em que os Estados Unidos estão na documentação sobre a repressão no Brasil é o grau em que os Estados Unidos não estão ajudando a sociedade brasileira a se lembrar dos horrores do que aconteceu a portas fechadas em segredo centros de detenção.”

Ainda no capítulo Violações de direitos humanos dos povos indígenas do Relatório da Comissão da Verdade traz estes números assustadores de mortos num país que foi promovido no exterior como o país da gentileza e da cortesia (não se esqueça: estes dez povos são somente uma amostra do que se documentou):

Povo Cinta-larga (Estado do Mato Grosso), 3.500 mortos

Povo Waimiri-Atroari (Estado do Amazonas) - 2.650 mortos

Tapayuna (MT) - 1.180 mortos

Yanomami (AM/RR) - 354 mortos

Xetá (PR) - 192 mortos

Panará (MT) - 176 mortos

Parakanã (PA) - 118 mortos

Xavante Marãiwatsédé (MT) - 85 mortos

Araweté (PA) - 72 mortos

Arara (PA) - 14 mortos

A Comissão Nacional da Verdade documentou violações de direitos humanos contra dez etnias indígenas, relatando mortes em massacres, despojamento de terras, remoções forçadas, disseminação de doenças, prisões, torturas e maus-tratos. O sofrimento desses eventos permanece vivo entre nós. O trauma persistirá até que povos como os Yanomamis, Pataxós, Guarani, Mura, Kaingang e outros vejam a demarcação de suas terras, obtenham reparação e vivam a paz.

O apelo desta carta é simples: lembrem-se do que aconteceu aos povos indígenas e se empenhem-se para que a história não se repita.

 

Foto principal de: .