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Vítimas da Lei: Morte de Líder Espiritual e Ativista Expõe a Violência das Leis Contra Indígenas na Bahia

por Edson Krenak (Krenak, membro da equipe CS)

Ser Indígena é perigoso. Independentemente dos papéis que a comunidade indígena possa desempenhar na sociedade, como a descolonização do Estado transformando leis injustas em políticas justas, a defesa do meio ambiente, a proteção da biodiversidade, a luta pela autodeterminação e a defesa dos direitos humanos e da natureza, todos esses papéis, que podem parecer positivos no entendimento comum e democrático, têm trazido violência, assédio e morte a milhares de ativistas e líderes indígenas ao longo dos anos.

Todos nós testemunhamos, como testemunhas, profundamente entristecidos na tarde de domingo, 21/01/2024, mais um episódio nefasto na história da justiça territorial no Brasil. Três líderes indígenas do povo Pataxó Hã Hã Hãe, parceiros do Fundo KOEF, foram baleados durante um ataque de um grupo de fazendeiros. Com a presença da polícia militar do estado da Bahia, Brasil, e com o consentimento e negligência das autoridades federais, esse grupo de fazendeiros autodenominado "Invasão Zero" tentou retomar o território Caramuru, terra tradicional do povo Pataxó, no município de Potiraguá, no extremo sul da Bahia.

Fotos circularam em veículos de notícias e em redes sociais, mostrando a chocante imagem da polícia protegendo fazendeiros enquanto cercavam a comunidade indígena e atiravam contra eles. Um dos feridos, o cacique Nailton Pataxó Hã Hã Hãe, a quem visitamos em 2022 e que possui um Doutorado em Saber Notório em comunicação tradicional pela prestigiosa Universidade Federal de Minas Gerais no país. Sua irmã, a pajé Nega Pataxó, líder espiritual da comunidade local e muito respeitada por outras lideranças indígenas, foi assassinada. A terceira vítima foi o enteado do cacique Nailton, o jovem William, que foi atingido por um tiro de raspão e está se recuperando. Além dos líderes que foram atacados, muitos outros membros da comunidade sofreram ferimentos graves, incluindo outro líder, o cacique Aritana, que foi baleado no abdômen. No momento em que este texto foi escrito, outras sete pessoas ainda estavam no hospital recebendo tratamento. Em entrevista recente após o incidente, o delegado Nailton confirmou que a Polícia Militar do estado da Bahia participou ativamente do ataque aos Povos Indígenas.

O cacique Nailton tem sido uma força exemplar na descolonização e na luta pela autodeterminação dos povos indígenas no Brasil há décadas. Ele organizou workshops em sua comunidade para descolonizar a terra, chamados "Retomadas", e sua perseverança no ativismo e na defesa dos direitos indígenas em várias partes do país é evidenciada pelo sucesso na retomada de mais de 50.000 hectares da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, juntamente com outras comunidades que foram negligenciadas pelo estado.

Mesmo no contexto da Assembleia Constituinte de 1987, defendendo os direitos humanos e dos povos da floresta, ele atuou como defensor do marco mais significativo dos direitos dos povos indígenas no Brasil, a Constituição de 1988 (que, em sua implementação, falhou terrivelmente). Suas negociações e formas de comunicação estratégica, espiritual e de aguda crítica política são orientadas por um espírito de preservação da vida, justiça social, proteção ambiental e pela necessidade de transmitir seus saberes e experiências para jovens lideranças.

A pajé Nega Muniz Pataxó foi uma grande líder política e espiritual de seu povo. Preocupava-se em curar a terra, sustentar e fortalecer a vida. Sua liderança espiritual mobilizava a juventude e as mulheres indígenas numa luta constante pelo meio ambiente. Sua presença marcante e relevância iam além do território Catarina Caramuru Paraguassu, estendendo-se a outras frentes, como no Acampamento Terra Livre e em instituições acadêmicas por todo o país.

De acordo com uma nota explicativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), "ruralistas da região cercaram a área com dezenas de caminhonetes enquanto a polícia atirava contra os indígenas. Eles se mobilizaram através de um chamado no WhatsApp, convocando fazendeiros e comerciantes para realizar a reintegração de posse da fazenda com as próprias mãos. Dois fazendeiros foram presos por porte ilegal de arma. Um vídeo mostra os feridos no chão, ainda sem socorro, sendo cercados pelo grupo de ruralistas que comemoravam a violência".

Essas supostas reintegrações de posse sem qualquer legalidade agem de maneira sádica, inescrupulosa e letal contra o direito originário que, diante da omissão do Estado brasileiro, leva os indígenas à ação de auto-demarcação.

Há décadas, o povo Pataxó Hã Hã Hãe sofre preconceito e discriminação por parte da sociedade civil, especialmente das autoridades locais e fazendeiros que os acusam de serem índios falsos, negando seu direito à autodeterminação e identidade tradicional.

A tese jurídica do Marco Temporal, rejeitada pela suprema corte do país no final de 2022, foi fragmentada, renomeada e espalhada por várias outras leis que acabaram sendo aprovadas pelo Congresso Brasileiro, apesar de declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

O marco temporal concede aos não indígenas o direito de tomar terras indígenas para as quais não há prova, dada pelos indígenas, de que viviam lá antes de 1988. No Brasil, é impossível para as comunidades indígenas apresentarem documentos, pois não há titulação de terras aos indígenas desde o século XIX. Além disso, desde o estabelecimento de inúmeras políticas de terras, um violento regime de expansão latifundiária das grandes elites econômicas do país desde a independência em 1822, a máquina do estado tem sido usada para remover, expulsar comunidades indígenas de suas terras e extinguir suas culturas. O século XX foi marcado por políticas de integração forçada, assimilação e remoções forçadas.

Um relatório recente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) documentou um padrão perturbador de violência contra povos indígenas no estado da Bahia, Brasil. O relatório destaca o envolvimento de um grupo de fazendeiros e seus associados que têm usado redes sociais e outras plataformas de comunicação para organizar ataques coordenados contra comunidades indígenas.

Em uma carta endereçada à Ministra da Justiça, a deputada indígena Célia Xakriabá chama a atenção para essas descobertas alarmantes e pede ação imediata para proteger os povos indígenas na região. A carta enfatiza a impunidade que tem prevalecido nesses casos, pois os autores frequentemente agiram com o apoio tácito de agentes de segurança e do Estado, ou da negligência deste. 

A carta da deputada Célia exorta o governo a tomar medidas decisivas para resolver essa crise. Ela pede a investigação e o processo criminal dos autores desses crimes, bem como a implementação de medidas para proteger os povos indígenas de mais violência. A carta também enfatiza a necessidade de uma estratégia abrangente para abordar as causas profundas do conflito, incluindo direitos à terra e desigualdade socioeconômica. A violência contra povos indígenas na Bahia é uma grave violação dos direitos humanos e uma ameaça à integridade do sistema legal brasileiro. O governo deve tomar todas as medidas necessárias para proteger a vida e os meios de subsistência dos povos indígenas e garantir que a justiça seja feita.

O relatório do CIMI documenta uma série de abusos, incluindo ataques físicos, ameaças, invasões de terras indígenas e destruição de propriedade na região onde Nega foi assassinada. Líderes indígenas têm sido particularmente alvos, com alguns sendo submetidos a intimidação e violência. O relatório também observa que os ataques tiveram um impacto devastador nas comunidades indígenas, causando medo, deslocamento e perturbação de seu modo de vida tradicional.

“Na Bahia, as lideranças do povo Pataxó tornaram-se alvos de fazendeiros e seus comandados pistoleiros. Perseguição, ameaças, espancamentos, invasão e assassinatos tornaram-se rotina no dia a dia das famílias indígenas. Lá a violência também assumiu contornos dramáticos, com a diferença de que os policiais militares que, segundo as investigações, atuam em espécies de milícias rurais a serviço de fazendeiros, o fazem fora do horário de serviço.”

Mais uma vez, nossos parentes são vítimas de leis violentas, de um estado fraco e incapaz e de setores criminosos da sociedade civil.  Exigimos que as autoridades competentes, o Ministério da Justiça, o Ministério Público Federal investiguem o caso e punam os criminosos. Além disso, que o governo brasileiro demarque as terras dos Pataxó e de outros povos que estão na mesma situação no estado da Bahia para que a violência e a injustiça tenham fim. 

Expressamos nossa solidariedade ao povo Pataxó Hã Hã Hãe, à família do cacique Nailton e, de modo especial, saudamos a história exemplar e a memória da pajé Nega Muniz Pataxó.


Principais fotos: Nega Pataxo - foto Teia dos Saberes, 2022 Cacique Naiton. Chefe Nailton, Foto do Portal Desacato.